quinta-feira, junho 08, 2006

O ano em que desistimos

Amigos,
Continuo em estado vegetativo nas questões de política. Contudo, gostaria de ter escrito o texto abaixo, o qual expressa exatamente meu sentimento atual...

O ano em que desistimos
GUSTAVO IOSCHPE

O MAIS surpreendente destes doze meses em que começamos a chamar parlamentares de "mensaleiros" não é que uma fatia aparentemente expressiva de nossos deputados recebesse uma mesada para votar com o governo. Nem que os deputados achassem que podiam se inocentar desse crime através da confissão de outro (caixa dois).

Nem que eles efetivamente tenham sido inocentados. Nem que um deles tenha conjurado para sua absolvição uma trama certamente demasiado rocambolesca para ser aceita no mais mexicano dos folhetins: a esposa foi ao banco pagar a conta da TV a cabo e saiu de lá com 50 mil reais. Nem que o escárnio tenha chegado a tal ponto que uma congressista tenha se sentido suficientemente à vontade no ambiente prostibular que se tornou o belo prédio de Niemeyer para desfilar seus desajeitados passes do funk da sem-vergonhice. Nem que recursos de empresas estatais fossem uma fonte do numerário usado para alimentar os mensaleiros, configurando um novo e tenebroso nível de estelionato no país, em que os recursos do Estado são utilizados para irrigar um partido a chegar e manter-se no poder, solapando a isonomia que é a essência do regime democrático.

Nem que o marqueteiro do presidente tenha reconhecido, aos prantos, que recebeu dinheiro no exterior -uma única vez!- para realizar a campanha política de petistas. Nem que depois tenhamos descoberto que aquela não havia sido a única. Nem que, do "núcleo duro" do governo, um membro tenha sido cassado e indiciado por suspeitas de chefiar a máfia, outro tenha sido forçado a pedir demissão e tenha também sido indiciado por abiscoitar propinas em seus tempos de prefeito e o terceiro tenha abandonado seu ministério por negócios escusos com um familiar. Nem que um ministro da Fazenda tenha entrado em conluio com o presidente do segundo maior banco público do país para violar o direito à privacidade de um caseiro e divulgar seu sigilo bancário à imprensa.

Nem que o procurador-geral da República tenha oferecido denúncia contra 40 das mais altas cabeças da República por formação de quadrilha e tenha chamado o partido ora no poder de "sofisticada organização criminosa". Nem que dinheiro público tenha aparecido numa cueca em um detector de metais de um aeroporto. Nem mesmo que o nosso presidente -aquele que nomeou e chefiou toda a gangue e que tem ao seu dispor todo o aparato de informação e inteligência das forças de investigação civis e militares- consiga se manter no cargo única e exclusivamente por alegar desconhecimento de tudo e todos que estavam à sua volta e que foi traído. (Em outros países, desconhecimento, autismo e ingenuidade desqualificam a pessoa para o exercício da Presidência. No Brasil, tornam-na favorita para a reeleição.)

Não. Tudo isso é grotesco, é revoltante, é pusilânime, é roto e vergonhoso. Mas não chega a ser surpreendente porque, infelizmente, a única coisa que nos surpreende em nossos homens públicos é a correção, a ética, a honestidade.

O que é verdadeiramente surpreendente, o que beira as raias do chocante é que, envolta e soterrada por essa avalanche de esterco, enganada e vilipendiada por seus representantes eleitos e sabendo que os contos da carochinha contados por eles em sua defesa não passavam de empulhação da grossa, a sociedade brasileira tenha aquiescido e aquietado-se. Que tenha aceitado mansamente escândalo depois de escândalo. Que tenha relevado aquilo que povos sadios teriam visto como acinte. Que num país de 180 milhões de almas penadas não tenha havido um partido, um sindicato, um grêmio estudantil, uma ONG ou uma roda de bocha sequer com a disposição de ir às ruas, de convocar uma passeata, de jogar um mísero tomate ou dar um grito solitário contra essa patifaria que nos confisca a nação.

Com o silêncio, tornamo-nos cúmplices. Por que essa inação? Será que as duas décadas de miasma econômico nos deixaram suscetíveis a acreditar que um crescimento econômico que só superou o haitiano é realmente uma boa performance? Nos vendemos por tão pouco? Ou será que a fadiga com o sistema político chegou ao ponto da total indiferença? Será que depois de apostarmos na redemocratização, no presidente-carateca, no presidente-sociólogo e no presidente-operário e vermos nossas expectativas cada vez mais frustradas finalmente abandonamos o barco? Não sei. O certo é que esses últimos doze meses, esses sombrios e desalentadores doze meses marcam a nossa desistência. Lavamos as mãos.

Daqui pra frente nossa democracia será como aqueles casamentos em que os cônjuges mal disfarçam sua infidelidade. Permanecem casados por um misto de conveniência e obrigação, mas ambos sabem que nenhuma das partes pode ser confiada, nem tampouco que cabe qualquer indignação frente aos abusos e omissões do outro. Os eleitos nos enganam e os eleitores tentamos burlar leis, sonegar taxas e tratar a urna como penico, e ficamos acertados que ninguém denunciará as impropriedades do outro.
Estamos num grande e árido deserto, sem ninguém que possa nos conduzir pelo mar vermelho-lama que cada vez ocupa mais espaços. Talvez um dia nosso povo chegue à Terra Prometida, mas não será nesta geração.

GUSTAVO IOSCHPE , 29, mestre em desenvolvimento econômico pela Universidade Yale (Estados Unidos), é autor de "A Ignorância Custa um Mundo - O Valor da Educação no Desenvolvimento do Brasil" (Editora Francis, 2004) e "Vestibular Não é o Bicho" (Editora Artes e Ofícios, 1996). Foi colaborador da Folha nos cadernos Fovest (1996-1997) e Folhateen (1997-2000).

15 Comments:

Blogger Alexandre, The Great said...

Que texto, Nat.
Realmente tenho que concordar: a urna é um penico!

Apenas acho que o autor está desprezando algo que não se ouve, não se vê, é algo silencioso, mas existe e transbordará de forma avassaladora em outubro.
Veremos...

10:50 da tarde  
Blogger Camarada Arcanjo said...

Porque a inação, pergunta o autor.

Por que o povo sabe que qualquer ação não terá apoio da classe política. O Legislativo é uma vergonha e o Judiciário apoia esta vergonha. O Excutivo é o resultado do Legislativo no poder administrativo do Estado.

A inação não é exclusividade do povo, antes, a inação é uma característica da classe política diante do crime praticado pela classe política.

12:09 da manhã  
Blogger Santa said...

Nat querida,

A sociedade brasileira vive um quadro de barbárie. Um retrocesso nos níveis mais básicos, como comer e morar. Antes mesmo da educação, saúde sanitária, trabalho, salários, etc.. O caos social que se manifesta no Brasil está bem exemplificado nos níveis de violência que tem se repetido em várias partes do Brasil. Afinal, somos uma massa faminta, doente, desempregada e marginalizada. Na medida em que o tecido social está deteriorado, os pobres tornam-se "inimigos públicos" da sociedade em função de sua reação à miséria - onde a violência (do quebra-quebra do MLST aos banhos de sangue do narcotráfico), buscam legitimidade no incentivo ao medo da população. Essa é a realidade, e passa a margem do Congresso, do Supremo, do Palácio do Planalto e do partido político ("pseudo-representação da sociedade") .

Bjs

9:42 da manhã  
Blogger Santa said...

Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

9:43 da manhã  
Blogger Saramar said...

Nat, boa tarde.
O texto é um dos mais primorosos já construídos sobre a tragédia brasileira.

Beijos

12:03 da tarde  
Blogger Ozéas said...

Dizem que quando a munição falha e o tiro não sai, que picotou...

Ainda não foi dessa vez que o Blog do Ozéas acabou.
Obrigado pelas palavras de carinho.

Bjs

2:03 da tarde  
Blogger Al Berto said...

Viva:

Será que vocês aí não arrumam definitivamente um tipo sério para tomar conta desse imenso e rico país?

Ou será que há interesses que estão sempre boicotando o trabalho dos governos?

Cumprimentos.

8:05 da tarde  
Blogger Magui said...

Esse cara e um pandego: saiu do Brasil!!! kakakaka

12:09 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

A urna um penico, mas precisamos usar... Nat, vê se não some de novo! :-) Bjs e bfs

1:57 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Nat, impossível se alienar quando pessoas como você, ainda sentem indignação.
Creio que por várias gerações o país sofrerá as consequências desse desgoverno, a verdade é que estamos sem opções.

10:03 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Nat,

O texto é primoroso, mas eu ainda creio que tanta arrogância tem um preço e que o povo reagirá nas urnas, isso não será o fim dos problemas, mas o início de uma luta árdua que nos levará um dia a ele, pode até ser que leve mais de uma geração, mas a "terra prometida" somos nós quem teremos de arar.

12:06 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

O ensaio geral para a tomada do Poder foi feito.

Aguardemos, confortavelmente sentados, que apareça, no meio do MST, do MLST ou dos Sem Teto urbanos, alguém com a audácia de Adolf Hitler ou Lênin para que se tome de fato o poder de Estado — contra nós, porque totalitário. Então, o novo governo que será dirigido por um partido, traçará suas diretivas e dará suas ordens às Forças Armadas como no III Reich e na URSS

Oliveiros S.Ferreira
fonte: Ternuma

1:27 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Nat,

Ao menos por uma noite vamos esquecer tudo isso e celebrar o amor, a paixão, a vida.

Feliz noite dos namorados.

Um beijo

6:02 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

DEPENDE DE NÓS!!! "Para que talvez um dia nosso povo chegue à Terra Prometida, mas não será nesta geração... Tentemos então!!! :-) Bjs

9:45 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Prezada Nat,
A realidade não passa à margem do Palacio do Planalto.
Infelizmente esta triste realidade "emana" do Palacio do Planalto.
Não tenha duvidas de que os "movimentos sociais" divulgados pela mídia estão em sintonia com o "Palhaço do Planalto". Os diversos movimentos que contestam o Planalto nem são divulgados pela mídia.

3:43 da tarde  

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